AULAS DE FILOSOFIA 3º ANOS
Qual é a diferença entre ética e moral?
Podemos responder a esta pergunta com uma história árabe.
Um homem fugia de uma quadrilha de bandidos violentos quando
encontrou, sentado na beira do caminho, o profeta Maomé. Ajoelhando-se à frente
do profeta, o homem pediu ajuda: essa quadrilha quer o meu sangue, por favor,
proteja-me!
O profeta manteve a calma e respondeu: continue a fugir bem
à minha frente, eu me encarrego dos que o estão perseguindo.
Assim que o homem se afastou correndo, o profeta levantou-se
e mudou de lugar, sentando-se na direção de outro ponto cardeal. Os sujeitos
violentos chegaram e, sabendo que o profeta só podia dizer a verdade,
descreveram o homem que perseguiam, perguntando-lhe se o tinha visto passar.
O profeta pensou por um momento e respondeu: falo em nome
daquele que detém em sua mão a minha alma de carne: desde que estou sentado
aqui, não vi passar ninguém.
Os perseguidores se conformaram e se lançaram por um outro
caminho. O fugitivo teve a sua vida salva.
A moral incorpora as regras que temos de seguir para
vivermos em sociedade, regras estas determinadas pela própria sociedade. Quem
segue as regras é uma pessoa moral; quem as desobedece, uma pessoa imoral.
A ética, por sua vez, é a parte da filosofia que estuda a
moral, isto é, que reflete sobre as regras morais. A reflexão ética pode
inclusive contestar as regras morais vigentes, entendendo-as, por exemplo,
ultrapassadas.
Se o profeta fosse apenas um moralista, seguindo as regras
sem pensar sobre elas, sem avaliar as consequências da sua aplicação
irrefletida, ele não poderia ajudar o homem que fugia dos bandidos, a menos que
arriscasse a própria vida. Ele teria de dizer a verdade, mesmo que a verdade
tivesse como consequência a morte de uma pessoa inocente.
Se avaliarmos a ação e as palavras do profeta com absoluto
rigor moral, temos de condená-lo como imoral, porque em termos absolutos ele
mentiu. Os bandidos não podiam saber que ele havia mudado de lugar e, na
verdade, só queriam saber se ele tinha visto alguém, e não se ele tinha visto
alguém “desde que estava sentado ali”.
Se avaliarmos a ação e as palavras do profeta, no entanto,
nos termos da ética filosófica, precisamos reconhecer que ele teve um
comportamento ético, encontrando uma alternativa esperta para cumprir a regra
moral de dizer sempre a verdade e, ao mesmo tempo, ajudar o fugitivo. Ele não
respondeu exatamente ao que os bandidos perguntavam, mas ainda assim disse
rigorosamente a verdade. Os bandidos é que não foram inteligentes o suficiente,
como de resto homens violentos normalmente não o são, para atinarem com a
malandragem da frase do profeta e então elaborarem uma pergunta mais
específica, do tipo: na última meia hora, sua santidade viu este homem passar,
e para onde ele foi?
Logo, embora seja possível ser ético e moral ao mesmo tempo,
como de certo modo o profeta o foi, ética e moral não são sinônimas. Também é
perfeitamente possível ser ético e imoral ao mesmo tempo, quando desobedeço uma
determinada regra moral porque, refletindo eticamente sobre ela, considero-a
equivocada, ultrapassada ou simplesmente errada.
Um exemplo famoso é o de Rosa Parks, a costureira negra que,
em 1955, na cidade de Montgomery, no Alabama, nos Estados Unidos, desobedeceu à
regra existente de que a maioria dos lugares dos ônibus era reservada para
pessoas brancas. Já com certa idade, farta daquela humilhação moralmente
oficial, Rosa se recusou a levantar para um branco sentar. O motorista chamou a
polícia, que prendeu a mulher e a multou em dez dólares. O acontecimento
provocou um movimento nacional de boicote aos ônibus e foi a gota d’água de que
precisava o jovem pastor Martin Luther King para liderar a luta pela igualdade
dos direitos civis.
No ponto de vista dos brancos racistas, Rosa foi imoral, e
eles estavam certos quanto a isso. Na verdade, a regra moral vigente é que
estava errada, a moral é que era estúpida. A partir da sua reflexão ética a
respeito, Rosa pôde deliberada e publicamente desobedecer àquela regra moral.
Entretanto, é comum confundir os termos ética e moral, como
se fossem a mesma coisa. Muitas vezes se confunde ética com espírito de corpo,
que tem tudo a ver com moral mas nada com ética. Um médico seguiria a “ética”
da sua profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que cometesse um
erro grave e assim matasse um paciente. Um soldado seguiria a “ética” da sua
profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que torturasse o inimigo.
Nesses casos, o tal do espírito de corpo tem nada a ver com ética e tudo a ver
com cumplicidade no erro ou no crime.
Há que proceder eticamente, como o fez o profeta Maomé: não
seguir as regras morais sem pensar, só porque são regras, e sim pensar sobre
elas para encontrar a atitude e a palavra mais decentes, segundo o seu próprio
julgamento.
AULA 02
aráter Histórico da Moral
por Breno Lucano
Ontem li um folder, provavelmente de instrumentalização
religiosa, que dizia que a perda de valores morais na juventude leva ao uso de
drogas e violência. Disseram drogas e violência, mas implicitamente entende-se
também homossexualidade, pedofilia, distanciamento do núcleo familiar. Essas
afirmações merecem algumas reflexões detalhadas.
Vamos por partes. O primeiro ponto que se deve considerar é
quanto à suposta perda de valores morais. Sempre recorro a experiência de
Comte-Sponville nesse sentido quando, ao perguntar numa sala de aula para seus
alunos se eles possuíam moral, eles disseram "não". Ora, mas nenhum
deles, em nenhum momento, seria capaz de matar uma idosa indefesa ou de extrair
o rim de uma criança e vender para o mercado negro. Quando Comte-Sponville usou
a expressão moral, os alunos rapidamente associaram ao conjunto normativo
religioso: amar pai e mãe, distanciar-se da tentação, evitação do sexo antes do
casamento. São valores morais, é certo, e disso não duvidamos. Mas evitar a
morte de uma criança também o é. Se ambos possuem conteúdo axiológico - são
valores -, então porque alguns possuem resistência e outros são obedecidos sem
reflexão, instantaneamente, prontamente?
O outro ponto que devemos considerar é que a moral surge
quando o homem supera sua natureza puramente instintiva e passa a viver e
privilegiar a coletividade. A moral surge como um mecanismo de regulação das
relações entre indivíduos entre si e indivíduos e comunidade. Essas regulações
historicamente se manifestaram na tentativa do homem de subsistir e defender-se
e traduziu-se no uso de ferramentas, ou, em outras palavras, no trabalho. A
fragilidade das forças humanas diante do mundo que o rodeia determina que, para
enfrenta-lo e tentar dominá-lo, reúna todos os esforços possíveis para
superá-lo. Assim, o trabalho assume função coletivista tão como a vida social
assume função social: entende-se que, apenas reunidos seriam capazes de
existir. Assim, nasce a moral com a finalidade de assegurar a concordância do
comportamento de cada um com os interesses coletivos.
Os juízos Bom e Mal passam a deter conotação coletiva. É
visto como um Bem tudo quanto for capaz de favorecer os interesses coletivos e
Mau tudo quanto for contrário o que for capaz de debilitar ou minar a união.
Estabelece-se, assim, uma linha divisória entre o que se espera - o Bem - e o
que se deve evitar - o Mal -, baseado numa série normativa de comportamentos:
todos são obrigados a trabalhar, a lutar contra os inimigos da tribo, etc.
Essas normas comportam o desenvolvimento de adjetivos que a justifiquem e
contribuam, como a solidariedade, ajuda mútua, disciplina, amor aos filhos da
mesma tribo. Pelo mesmo motivo, tudo quanto mais tarde foi chamado vício foi qualificado
como preguiça, egoísmo, etc.
Com o desenvolvimento progressivo da sociedade, o trabalho
produziu desigualdades entre seus membros. A justiça distributiva, antes um Bem
social, passa a ser desvalorizada em prol da produção. Comunidades passam a produzir
mais que outras e, mais tarde Cidades-Estado. Prisioneiros de guerra passam a
ser escravos, algo que inexistia nas comunidades primitivas. E a importância da
escravidão perpassava todo o código de ética social. Era Bom e útil que a
sociedade tivesse escravos.
No medievo os homens livres das cidades, como artesãos,
pequenos industriais e comerciantes, estavam obrigados a oferecer certas
prestações em troca de proteção ao seu Senhor que, a seu turno, estava
submetido a um rei ou imperador. Nesse universo, inseriu-se também a Igreja,
dado que possuía seus próprios feudos ou terras. A Igreja era proprietária do
Senhor Supremo do qual todos os outros senhores deviam vassalagem, exercendo,
portanto, poder indiscutível em toda a vida cultural e moral da sociedade. Por
outro lado, a divisão social em estamentos e corporações produziu diversas
morais. Assim, vimos o surgimento do código moral dos nobres e cavaleiros; o
código moral de cada ordem religiosa, em seus mais variados estatutos; códigos
das corporações; códigos universitários. Rodeia o imaginário popular em
especial o código moral cavalheiresco, por seu desprezo pelo trabalho físico e
sua exaltação ao ócio e a guerra. Era necessário que o nobre se exercitasse nas
virtudes cavalheirescas: montar a cavalo, nadar, atirar flechas, esgrimar,
prestar corte à dama.
E nasce a burguesia. A produção individual ultrapassou o
entendimento da vassalagem e da natural diferença entre as pessoas, antes
inquestionável. Cada um, agora, confia unicamente em suas próprias forças,
busca seu bem-estar, ainda que tenha que passar pelos demais, ainda que tenha
que vender um rim no mercado negro. Progressivamente a moral se alterou de uma
simples relação de vassalo e seu Senhor, com todos os imperativos subjetivos
com ele condinzentes a uma relação de perpétua concorrência de uns com os
outros. A moral passa a ser intensamente egoísmo e individualista.
A moral coletivista dos povos primitivos foi substituído
pela escravocrata, pelo culto à guerra, que foi transfigurada segundo os
designos de Deus e Sua vontade, alterada pela busca individual por
sobrevivência num mundo de perpétua concorrência e disputa. A servidão feminina
foi substituída por militante luta por igualdade de direitos com os homens. Os
negros conquistaram espaços sociais, com o direitos de assitir a missa com os
brancos, de serem libertos, poderem votar e conquistar cidadania. Indígenas
antes considerados aliados em guerra, quando não escravos dos portugueses,
conquistam loteamento para a proteção de sua cultura e tradição. Os gays, antes
considerados como doentes e submetidos à castração e tortura em supostas
clínicas para superar seu desvio antes de Stonewall passam a ser entendidos
como cidadãos plenos juridicamente, podendo até mesmo casar em alguns países.
Deficientes físicos, antes explorados e humilhados em circo de horrores do
século XIX, agora possuem direitos e deveres como qualquer outro cidadão.
A título de exemplo, há algo entorno de cinco anos, lancei
no Portal Veritas as mesmas perguntas que hoje se encontram como enquete: 1) a
união homoafetiva deve ser reconhecida?; e 2) a homofobia deve ser
criminalizada? Na época a diferença entre sim e não foi surpreendente. A
maioria dos votantes não gostaria que a união homoafetiva fosse reconhecida e
que a homofobia não fosse criminalizada. Hoje, até o momento, com as mesmas
perguntas, temos que 85% dos votantes aprovam a união homoafetiva e 92% aprovam
a criminalização.
Não há moral que não se altere com a sociedade, não há Bem
que não seja construção social. Assim, se pensarmos no folder que li no início do texto, certamente temos um
entendimento limitado do que é moral e sua verdadeira função e estruturação.
Moral é sempre dinâmica, estabelecida, continuamente construída e variável de
espaço em espaço, de tempo em tempo.